noite alta de oceanos desertos
ouço o som da secreção estalando na garganta
antes de cada tossida incontrolável
(a testa - sempre quente - dói a cada tossida)
acho que tenho 40 anos e não sei expectorar
mas tô melhorando
a febre constante caiu de 39 para 38 graus no terceiro dia
com variações tão irrelevantes
quanto os cálculos que aprendemos em engenharia elétrica na ufrj
algo em mim matematiza as agonias
para tentar fazê-las tender a menos infinito
sem ir ao médico
(dizem que a poesia salva)
por exemplo
agora temos o paradoxo do paracetamol:
ao persistirem os sintomas ingiro-o
mesmo com 36 graus de febre
mas aí a febre vai a 39
e cai e suo
suo mais do que o elemento água em meu mapa natal
e surge o dilema do sono:
(A) com o ar condicionado ligado, resseca a mucosa e tusso mais, mas melhoram os mosquitos
(B) se me cubro, suo mais e tusso menos, mas os mosquitos ainda me acordam pelo som
(C) se desligo o ar condicionado e me descubro, há duas opções, a seguir:
opção 1 - não ligo o ventilador e os mosquitos me devoram
opção 2 - ligo o ventilador e tusso mais (volte para A)
matematizo hierarquicamente no meio dos sonhos curtos
formas trigonométricas que precisei de professor particular para entender no martins
formas de não contar carneiros para não acordar
e consigo
outro exemplo
se a narina esquerda se fecha
e os dois remédios distintos não funcionam
viro a 90 ou 45 graus para a direita na cama
se fico assim um tempo
melhora
(a narina mais alta destapa e a livre se tapa
na razão inversa do quanto pode ser longa uma noite)
se fico tentando não tossir
tusso
se desisto
durmo
(...)
5 dias a 40 graus de febre e fico tonto
com dor atrás dos olhos e nas articulações
só então vou ao médico:
era pneumonia
- diga 33 (não houve a melhor parte, bandeira)
o rombo em meu peito preenchido por um calombo interno
que dói
eu tusso e não sai
eu cuspo e não sai
arroto e não sai
desisto
radiografia
exame de sangue
tomografia computadorizada
(as atendentes tão mais carinhosas que as médicas apressadas...)
- a garganta tá limpa (mas arde)
- dipirona é melhor que paracetamol (sempre?)
algo aqui sentiu que ia morrer
algo solene e alvéolo
preso ao peso do calombo no plexo
lembrei tanto dela
(meu anexo)
e quis namorar sem medo
pra morrer amando
(na maior beleza de ser tarde, não cedo)
há uma beleza em dor no peito
mesmo do lado errado
tipo drummond caminhando meio curvado
ou um parto em casa
fome já não há, quase
aceito o gosto azedo em tudo
e passo a beber mais limão
fossas nasais congestionadas
governar é abrir espadas
como pra não morrer
e a energia gasta pra digerir
não me permite verbar
então eu deito à direita do antibiótico
ouvindo-me fogos de artifícios e clarins e exércitos e batalhas
no meio da tarde chuvosa
e entupo as narinas da gosma infinita dos brônquios
durmo pouco
durmo os poucos sonhos que a dor permite
cada vez mais curtos
(pensamentos cada vez mais rápidos)
até o limite da loucura com a alucinação
passando por um poema louco
de experimentação
e tudo se torna uma música linda em um filme cult
(e já nem sei se dormi)
sensação de comunhão
comandando e sendo levado
pelo rosto de infinitos rostos do sonho
rostos de nuvens de dragões vermelhos
cavalgadas de valquírias...
tudo tão solene quanto meu calombo
- Fabio Rocha
- Escritor, psicanalista e poeta nascido no Rio de Janeiro em 1976. Considerado um dos poetas brasileiros mais representativos da década de 2000 na antologia Roteiro da Poesia Brasileira (Global, 2009), é autor de vários livros publicados gratuitamente em seu blog, cujos melhores poemas foram reunidos em A Magia da Poesia (Papel&Virtual, 2000), Corte (Ibis Libris, 2004), rio raso (Patuá, 2014) e o budismo e o tinder (Multifoco, 2020). Mantém o bem sucedido site “A Magia da Poesia”, que teve mais de um milhão de acessos em 2012, onde divulga a obra de grandes poetas. Seus poemas já foram selecionados para livros escolares, traduzidos para o russo e publicados em diversas revistas literárias.
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