30/04/2020

higienópolis

na casa da minha avó
tinha uma caneca vermelha
que era minha

ela trazia mate bem doce
o dia todo
gelado

de vez em quando sentava num lado do corredor
eu de outro
e a gente rolava lata de leite condensado

às vezes eu sentava no quintal
para ouvir um rádio antigo
e conversar com as plantas

meu avô jogava futebol comigo
mesmo sendo uma ladeira íngreme
sem cobrar perfeições

ia na esquina comprar sorvete
conversando com todo mundo

depois o mundo
virou esta briga
torta

minha avó com quase cem anos
passando por pandemia

e o presidente
(aquela mula)
nem fantasia
que se importa

29/04/2020

quarentena

o sol sobre a sombra da vida
abro a janela
a persiana

pássaros

o azul imenso lá fora
me azula

26/04/2020

vênus platinada

moro, mourinho ou mourão?
qual será a próxima atração
do roberto marinho?

25/04/2020

ex-juiz ex-ministro delata ex-honesto

no sonho
minha língua ficava amarelada
e ia soltando-se em fios
de tanta raiva política não dita
não escrita

o fascista anti-corrupção é ladrão?
que surpresa...

e a população sendo enterrada
em caixão fechado
pra não contaminar ainda mais
a nação

19/04/2020

sonho do sonho

o mar negro já toca a base
do shopping de vidro

janelas duras

pessoas consomem em todos os andares

o mar vence em ondas

primeiro andar: águas negras e pessoas nadando
segundo andar: roupas e acessórios
terceiro andar: praça de alimentação

18/04/2020

amanhã

eu já ouço
as pessoas cantando sol
quando tudo passar

uma só voz
o mesmo céu
novo
como a manhã

14/04/2020

fase

o horror passa eu faço carinho
a guerra perto eu durmo no ninho
a arte arde eu subo sozinho

13/04/2020

a torre

no alto do prédio do sonho
acima dos shows
dos jogos
dos amigos e inimigos
o que achei foram apenas mais portas

abri todas

o vento forte
só revelava
a altura da morte

12/04/2020

páscoa 2020 - frutos do laboratório P4 de wuhan

andrea bocelli cantando num mundo vazio
cidades vazias
catedrais vazias

um canto que preenche de encanto
ao vivo
quem segue vivo trancado em casa
graças aos progressos da ciência
nas mãos do vírus sintético da dra. zhengli shi

eu cego
e vivo
mastigo a tenra carne de animais torturados
movido pela beleza e ternura

(depois como chocolate)

11/04/2020

simbologia do número 4, o pendurado

na páscoa do vírus
acordo cruzando as pernas
para não esquecer do sonho: o número 4

eu pendurado:
não lutar

aprender com a estagnação

nenhum trem parando
em nenhuma estação

nada mais estável
que a ressurreição

09/04/2020

dura

o mar continua rugindo
fora das casas e dos apartamentos

o planeta com febre
se cura

07/04/2020

trovão sem thor

quando saio da pia
e falta luz na quarentena
eu não faço nada
no escuro

(e juro sem pena
que é o melhor
do dia)

06/04/2020

repetição

luto preso ao lúdico:
troféus e pódios e fama
dentro ou fora da cama

05/04/2020

domingo com vírus dormindo

uma carreata buzinando
carregando um santo
me acordou na quarentena

no céu, nenhum avião ou helicóptero
sob um mar com mais peixes
e menos plásticos

o padre de máscara
abençoava os de deus segurando palmeiras
e os ateus chateados por terem despertado

04/04/2020

vivos

me invento só
entre o sol
e o vento

03/04/2020

letras para o silêncio

por trás do sol que nasce
a sombra do sol que morre

humanidade clara
escondida do planeta em paz

aqui
jazz

02/04/2020

realismo estelar

nos hábitos herdados
perdi
o caminho que vai dar no sol

nunca quis filho
para não repassar a ele
meu mundo criado
sobre o criado mudo

(eu ardia mais
quando queria mudar o mundo)

na palavra e no canto
o encanto do brilho
de volta

me arrasto
tentando
reencontrar
o carinho

01/04/2020

interação online

pessoas perdidas guiando pessoas perdidas
pessoas carentes cantam para pessoas carentes:
nada mudou na quarentena

nadificar

nada
há de ficar:
tudo é sempre