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Escritor, psicanalista e poeta nascido no Rio de Janeiro em 1976. Considerado um dos poetas brasileiros mais representativos da década de 2000 na antologia Roteiro da Poesia Brasileira (Global, 2009), é autor de vários livros publicados gratuitamente em seu blog, cujos melhores poemas foram reunidos em A Magia da Poesia (Papel&Virtual, 2000), Corte (Ibis Libris, 2004), rio raso (Patuá, 2014) e o budismo e o tinder (Multifoco, 2020). Mantém o bem sucedido site “A Magia da Poesia”, que teve mais de um milhão de acessos em 2012, onde divulga a obra de grandes poetas. Seus poemas já foram selecionados para livros escolares, traduzidos para o russo e publicados em diversas revistas literárias.

25/09/2022

Ricardo Alfaya analisa toda minha obra poética em 4 livros

Alguns meses após enviar meu livro mais recente de poemas para o amigo poeta Ricardo Alfaya, recebi dele esta análise de toda a minha obra:





LEITURAS E RELEITURAS: Quatro livros de Fabio Rocha


Por Ricardo Alfaya


De Fabio Rocha, poeta carioca, recebo o livro de poemas que tem o surpreendente título de “o budismo e o tinder” (Rio, Birrumba / Multifoco, 2020). Assim mesmo, com todas as letras em minúsculas. Nessa obra, o autor adere direto à prática atual de produzir todos os poemas com letras minúsculas. Inclusive, nos títulos. E aqui temos o primeiro diferencial estético quando em confronto com os três volumes impressos anteriores do autor: “A Magia da Poesia” (Rio, Papel & Virtual, 2000); “Corte” (Rio, Ibis Libris, 2004); e “rio raso” (São Paulo, Patuá, 2014). Sim, o título do terceiro volume, na capa, surge também em minúsculas. Mas o fenômeno, em “rio raso”, somente ocorre na capa; no interior, os títulos se apresentam em caixa alta e, no corpo dos poemas, há alternância entre maiúsculas e minúsculas, conforme a paragrafação. Procedimento esse também adotado no interior dos dois primeiros livros. Quanto ao motivo estético relativo a “rio raso”, sucede que, na capa, o minúsculo das letras, sobre o insinuado movimento ondulante do fundo, sugere de fato um volume raso de água. E, claro, não escapa ao leitor perspicaz a ambiguidade desse “rio”, que remete à primeira pessoa do singular do verbo “rir”.


Porém, voltando a “o budismo e o tinder”, disse eu que considerei o título surpreendente. Aliás, para mim, mais do que surpreendente soou misterioso mesmo. Pois, acreditem ou não, eu não sabia o que era “tinder”. Como a outra parte do título falava em “budismo” e estou longe de ser profundo conhecedor dessa prática religiosa, imaginei, de início, que se tratasse de um desses hermetismos pascoais, isto é, de um termo esotérico relacionado ao budismo. Assim, como estava com o computador desligado, consultei o Sacconi impresso, nada achei. Nada também no Aurélio. Resolvi então começar a ler o livro, por certo, descobriria o sentido. Claro que não descobri nada e realmente não estava entendo patavinas do livro. Até que, olhando mais uma vez com atenção a capa, que é muito bonita, notei aqueles três coloridos ícones na parte inferior, que me pareceram essas coisas que existem em Redes Sociais. Virei a quarta capa, e tive a sensação de estar diante de uma logomarca.


Acabei ligando o computador e bastou escrever “Tinder”, na barra de busca, para que o mistério se esclarecesse. Tratava-se de um site de encontros; em geral, para namoro ou algo mais. Por fim, com base no texto de um dos poemas, o esclarecimento melhor da simbologia da capa e do próprio conteúdo do livro: o conflito entre a busca espiritual (na verdade, num sentido amplo, não apenas religioso) e o vermelho do “tinder”, isto é, da carne (e não apenas no sentido do sexo).


Poucos autores atuais escrevem poesia, tão centrados em si mesmos, quanto Fabio Rocha. E esse é um ponto em comum nos quatro livros impressos dele. O “eu” fabiano é incrivelmente onipresente. No caso, não importa se o poeta fala de suas fugidias musas ou de suas experiências meditativas, sempre notavelmente interrompidas por algumas das distrações e tentações telúricas.


Aliás, tem hora que Fabio lembra o Santo Antão, em permanente luta, na caverna, contra os demônios que tentam distraí-lo (com variados tormentos) do caminho da espiritualidade. Só que os “demônios” que tentam confundir e diluir Fabio são bem materiais, e atendem por nomes como Facebook, Televisão, Tinder, Geladeira e outras máquinas do mal.


No entanto, aí entra um aspecto fundamental. O que atormenta Fabio atormenta muitos de nós. Principalmente aqueles que também elegeram a busca espiritual (num sentido amplo) como a sua meta. Além de sentir na própria carne o problema, percebo que muitos outros praticantes de literatura, filosofia e artes – em geral – vivem hoje sofrida condição semelhante. Todos penam com a falta de tempo, com a dificuldade em conciliar as tantas mídias à nossa volta (a exigir nossa atenção) com as necessidades de retiro e concentração, indispensáveis, à produção de uma obra consistente. E, além disso, o permanente conflito entre inutilmente tentar conciliar as metas racionalmente traçadas, com os impetuosos e debochados desejos, que, amiúde, destroem qualquer projeto racional ou espiritual (se é que existe mesmo uma diferença entre ambos). 


Então, os dilemas de Fabio são tão nossos, tão de nosso tempo, que se tornam universais. Não nos sentimos lendo apenas as dores de outra pessoa. São nossas, são as de todos, sobretudo dos mais conscientes e mais sensíveis – em última análise. E somente se suporta ler a respeito porque, como diz reiteradas vezes Fabio, a poesia salva. Sim, só a poesia e o riso (raso ou fundo) salvam. A lágrima não salva, faz o sujeito morrer afogado. Mas se você consegue rir, apesar de tudo, você “segue adiante” – única direção possível – conforme afirma Fabio em um dos poemas.


Mas em qual dos quatro livros o poeta diz essas coisas? Nos quatro. Quanto a isso, não há problema. Porém, há sutis variações. E essas variações dizem respeito tanto à intensidade (em relação ao conteúdo) quanto à forma, como tentarei expor a seguir. Em suma, embora os quatro livros apresentem uma constante, as obras não se repetem, especialmente as duas últimas (“rio raso” e “o budismo e o tinder”). E que se entenda bem isso, não digo que os dois últimos sejam “melhores” do que os primeiros. São diferentes, são mais intensos (sobretudo o quarto), mas os primeiros possuem diversos fascínios e falam muito, com humor e ironia, da realidade nossa de cada dia. Muitas vezes mostram aquilo que fingimos não perceber ou que percebemos que os outros estão escondendo perceber. Vejamos, resumidamente, alguns aspectos (similitudes e diferenças).


A “Magia da Poesia”, primeiro livro de Fabio, de 2000, possui um título um tanto romântico, mesmo ingênuo. Porém, o título tem o mesmo nome do “site” do autor, isto é, “Magia da Poesia”. Trata-se de um “site” que existe desde 1999, ou seja, vem dos primórdios da internet, quando o autor era ainda jovem. E não é apenas um título de “site”, mas também o de um poema minimalista, presente nos dois primeiros livros impressos de Fabio. Longe de qualquer ingenuidade, o final desse texto em versos fala de qual seria a verdadeira magia de um poema: “eternizar um mínimo instante”. Acrescente-se, por fim, que o “site”, feito e mantido pelo próprio Fabio, é um sucesso de audiência (15 milhões de acessos) e uma das principais fontes de divulgação da obra do autor.


Então, temos aqui essa preocupação, nítida em Fabio, presente em suas duas primeiras obras (“Magia da Poesia” e “Corte”). Ou seja, de que o “Corte” logre obter um mínimo que se eternize. Em outras palavras, que leve à consagração e sobrevivência do “eu” literário. Veremos, mais adiante, que esse objetivo de imortalidade, se ainda existe em Fabio Rocha, já não se vincula à questão do corte, seja na forma ou no conteúdo, como já insinua no livro “o budismo e o tinder”.


Claro que não se pode confiar muito em afirmativas de poetas contemporâneos, cujas declarações são tão líquidas quanto evaporantes. Aliás, no quarto livro de Fabio, há referências constantes a Baumann, sobretudo, no que tange à liquidificação das relações amorosas.


De todo modo, no primeiro livro, qualquer ilusão a respeito da ingenuidade do poeta se desfaz com o desconcertante poema “LoBoS”. Poema, por sinal, que aparece como “LOBOS”, na abertura de “Corte”, o segundo livro, de 2004. Nesse texto um lobo se aproxima de uma criança. Pela tradição, o leitor fica na expectativa de que o lobo irá atacá-la (quem nunca leu ou ouviu a história do “Chapeuzinho Vermelho”?). Muito habilidosamente, o poeta se vale desse contexto. Porém, há uma primeira surpresa: o lobo, longe de atacar, se sente comovido pela presença do infante. Aproxima-se dele, carinhosamente, entregando-se ao afago, como um simples cachorro. Lágrimas e imagens comoventes atravessam os olhos de quem leia. Nisso, vem a surpresa: o menino pega um galho no chão, bate com ele no crânio da ex-fera, que cai morta. Incontinenti, o garoto devora o lobo e sacia sua fome.


Temos aqui um anúncio de um dos principais conflitos que atravessarão os quatro livros de Fabio, atingindo grande força expressiva em “o budismo e o tinder”. Refiro-me à questão da destruição da natureza pelo homem. Esse tema, recorrente em Fabio, e que me chamou a atenção desde o primeiro de seus livros, adquire um modo muito especial, corajoso e único. Em geral, mesmo os melhores poetas, quando falam da destruição da natureza, apresentam-na sempre de um modo um tanto distante e apartados de sua própria ação. Isto é, são sempre os outros que destroem a natureza. 


Em Fabio Rocha, ao contrário, temos, como na fábula do lobo, o ataque objetivo do homem à natureza. Dá-se que a natureza, muitas vezes apresentada como feroz, serve de justificativa para esse ataque. A tourada é possível porque o touro é feroz. Natureza boa é a natureza-morta, isto é, aquela domesticada e servil aos interesses do homem: os parques, os jardins, as praias cercadas por bares e calçadões, os animais que se submetem; as maçãs na mesa, diante de Cézanne… 


O sentimento de culpa e impotência (este detectado, em Filosofia, por Bertrand Russell), aparece na poesia de Fabio, em vários poemas, assim como surge na consciência dos que ousam encarar os fatos e na da minoria que ousa tocar no assunto. Em “Culpa”, na página 23 de “Corte”, o título já diz tudo. O poema é um daqueles em que Fabio reconhece que a sua simples existência (com os seus menores e maiores atos) fere de morte o Planeta: os passeios do poeta, “poluem o mundo”; a geladeira “esburaca a camada de ozônio”; “Banhos longos / desertificam o planeta.” Por fim: “Meus poemas / derrubam árvores”. Mais adiante, na página 28 de “Corte”, o poema “E Atenção”, declara, em seus últimos versos, que o poeta deve tentar convencer-se de que “está bem”: “Apesar  de estar em casa / ajudando a destruir o mundo / (…) / e absorvendo informações demais.”


São constatações absurdamente simples e profundas, ditas com uma espantosa leveza de linguagem. Nada de malabarismos de palavras, de termos pretensiosos, de rimas ou situações forçadas. Embora em “Magia da Poesia” e em “Corte”, o poeta demonstre se preocupar muito tanto com a forma quanto com o conteúdo do que diz, há um desconcertante equilíbrio em tudo, uma ironia cortante, fina, sutil que, de certo modo, oculta a potência com que os poemas atingem o leitor sensível. Leitor esse que, por sua vez, é tão massacrado por todo esse sistema quanto o próprio autor. 


Voltando ao poema do lobo, um ponto também que acho interessante, naquele texto, e que aparece em vários relacionados ao tema – inclusive nos que citei há pouco – é que não há propriamente crueldade no menino que mata o lobo. Ele não é um psicopata de filme americano. O infante não sente prazer em matar. Ele mata o lobo porque tem fome. Verdade que, na sequência do poema (talvez para chocar o leitor) o menino não demonstra qualquer arrependimento. Ele mata e se retira indiferente, sob o olhar cúmplice e também indiferente de uma coruja (a coruja, nas fábulas infantis, em geral é associada à inteligência, à razão, à sabedoria). Essa “culpa” (freudianamente inconsciente), no entanto, existe. Existe e aparece, justamente, em poemas como “Culpa”, “Em Atenção” e outros.


Assim como a criança mata o lobo por necessidade fisiológica, em outros poemas o “eu lírico” se entrega aos prazeres do ar refrigerado e da geladeira porque biologicamente não resiste. O “tinder” é mais forte do que o desejo pelo estado búdico. Apesar de a razão dizer “faça”, o sujeito não faz. E esse “sujeito” não é apenas o Fabio Rocha, mas a maioria que o esteja lendo, por certo. Afinal, “a sociedade empurra para um lado mais cego” (p. 40 de “o budismo e o tinder”) e, desse modo, “caio feliz nas melhores tentações” (páginas 44 e 45 de “o budismo e o tinder”). Mas é no poema das páginas 70 e 71, “racionalizando (gorro de Noel e camisa do Batman)”, que o poeta escancara claramente as contradições entre os ditames búdico-racionais e a vitoriosa força da carne (do “tinder”). Nesse poema, há toda uma sequência daquilo que sabemos que não devíamos fazer, mas que fazemos. Começa pelo “a gente sabe que não deveria comer carne / mas come” e vai até o “a gente sabe que não deveria interromper uma meditação / para fazer um poema / mas interrompe”. Não bastasse, o final irônico sobre uma situação cada vez mais frequente: “se derem chance / faremos palestras sobre autocontrole”.


Por outro lado, em “A Magia da Poesia” ainda encontramos poemas com o romântico título “Jardim” (dedicado a várias pessoas), que conclui com os dizeres: “As amêndoas serviam de giz / para escrever nas paredes / que era um menino feliz” (p. 17). Ou como “Brilho”, em que se diz (num poema dedicado a Alessandra): “Pingue a última gota / de esperança do coração… // Sempre haverá / estrelas no céu. // E nelas verei teu sorriso.” (p. 18). O estado de expectativa positiva também aparece neste, literalmente inspirado, “Respirar”: “Inspiro o luar, que na poça dança. / A lua nos inspira. Expiro esperança.” (p. 24). 


Tais discursos otimistas do primeiro livro já não aparecem no segundo, “Corte”, do qual foram, de fato, “cortados”. Mas sete dos melhores poemas de “A Magia da Poesia” se repetem em “Corte”, um deles, com ligeira modificação. No caso de Fabio, parece-me que ele não quis (como eu mesmo pretendi, em “Fronteiras em Liquidação”) aproveitar no segundo livro todos os melhores poemas do primeiro. Se quisesse, poderia. Há inúmeros muito bons como o já aqui citado “Sentido”: “Qual o sentido / de não ter sentido? // Nada faz sentido… / Nunca faz sentido… // O único sentido / é em frente.” Em “Antena” (p. 29), uma proposta de método que ele aplicaria, sobretudo, no segundo livro: “Quero captar, / como os Grandes, / a poesia da simplicidade. // Engenheiro que não sou, / devo desenvolver a antena / e encurtar o poema.”


Note-se que essa preocupação em fazer um poema conciso, esculpido, podado de suas “gorduras” e excessos sentimentais foi um ideário predominante na poesia dos anos 90, por uma influência que vem desde a poesia dos anos 1960 em diante. Não que fosse a única corrente, mas foi a predominante entre os poetas mais ligados à poética mais comprometida com uma postura crítica. Foi também a atitude mais adotada mesmo por aqueles que defendiam uma arte desvinculada de qualquer compromisso ideológico. A exceção ficou por conta dos poetas surrealistas, que, até por uma questão de método de trabalho, nunca se preocuparam com o tamanho de seus poemas.


Seja como for, a opção pelo lapidar foi constante no Fabio Rocha dos dois primeiros livros, sobretudo após seu poema “Corte” ser premiado por Affonso Romano de Sant’Anna, num concurso em que somente ele (Romano de Sant’Anna) foi o julgador. Diz o texto premiado de Fabio: “Tenho sorte. /  Ao menos tento forte / (mesmo que não acerte) / fazer do ócio, arte. // O tempo curto – corte. // Sem vida – morte.”


“Corte”, de 2004, é um grande livro de poesia. E, nesse segundo volume, já se nota uma característica que predominará nos dois últimos. Cadê a esperança? Cadê o otimismo? Em “Corte”, Fabio Rocha descobre que “a poesia da rosa / é seu espinho” (“A Cecília Meirelles”, p. 27). Na página 36, reaparece a “esperança”; porém, aqui, ela é uma mendiga: “Adivinhei minha esperança inteira / lá fora, no beco de Bandeira / mendigando.” Por fim, percebem-se poemas em que o autor deixou um tanto de lado a navalha, permitindo prolongamentos no texto. Entre outros, “Longe, Longe” é um poema que ocupa duas páginas (54 e 55). “Diário” se espalhará por página e meia (72 e 73). “Fiat Lux” se estenderá por toda a página 82 e pelas seis primeiras linhas da 83. Por fim, “A Henry Miller” preencherá toda a 84 e mais quatro linhas da 85. Essa tendência a um alongamento, a uma maior despreocupação com o “corte” constituirá a tônica do livro seguinte (“riso raso”, 2014), firmando-se de vez em “o budismo e o tinder”, em que a maioria dos poemas são longos e há, inclusive, dois poemas em prosa, característica ausente dos três livros anteriores.


Conforme o título já sugere, “rio raso” dá sequência ao clima de desencanto, anunciado em “Corte” e aprofundado nessa obra crítica, editada pela Patuá. Embora ainda se perceba a preocupação com a medida dos poemas (na maioria deles), vários são mais longos que nos livros antecedentes. O poema “Vertigo”, por exemplo, ocupa três vertiginosas páginas, aparentemente, fazendo paralelo com “Vertigo”, título de uma HQ para adultos, norte-americana. Em “rio raso”, emerge também o primeiro poema de Fabio, em prosa, impresso em livro solo: “Sem Internet”. Em “rio raso”, Há ainda certa sobriedade monástica, inspirada pelo escuro da capa, em que até o nome do poeta brilha temerariamente, quase coberto pela “água escura” predominante. Esse clima de “claustro” e “penumbra” diz muito do conteúdo do volume e, de certo modo, parece anunciar o livro vindouro, em que o Budismo e o Tinder se baterão em duelo (apesar de o clima de “o budismo e o tinder” ser mais iluminado, mais claro, digamos assim). Aliás, em “rio raso”, poemas como “Meditação”, “Zen” e “Nocturno” comparecem, conferindo um toque budista ao livro. Outro aspecto, além da menor preocupação com o “corte”, é que se percebe um descompromisso maior com as regras da pontuação, em alguns poemas. Embora o autor ainda mantenha a alternância entre maiúsculas e minúsculas (o que, como vimos, deixa de ocorrer no quarto livro, em que só há minúsculas). 


Contudo, que não se vá supor que “rio raso” seja um livro sombrio. Muito pelo contrário, trata-se de uma obra repleta de humor e ironia. Sem dúvida, um livro crítico, como tudo que Fabio Rocha produz. Porém, como o próprio poeta se define, no poema da página 79, “sinto a brisa / que sempre soube ser.” Ou seja, por mais sofrida ou complexa sejam as circunstâncias descritas, há sempre um riso, mesmo que seja um tanto raso, que, se desprendendo do poema, serve ao poeta como leve tábua de salvação.


O que disse acima, vale mais ainda para o notável “o budismo e o tinder”, em que os poemas realmente brilham com luz intensa (como sugere a capa), mesmo sendo o livro impresso em que o poeta mais assumiu suas contradições e desencantos. Baumann, que publicou livros sobre os problemas de relacionamento contemporâneos, será amplamente citado. Muitos dos poemas são longos. Se em “rio raso” o poeta já anunciava claramente a despreocupação com o “Corte” (com a concisão), aqui ele pratica e usufrui dessa liberdade. Talvez por isso, apesar, da temática um tanto desiludida, os poemas ganhem uma expressividade envolvente. 

Por outro lado, no poema “exit (piedade)”, Fabio comenta: “esta noite soube que roberto piva / também não reescreve porra nenhuma / que a vida é curta demais pra reescrever poesia” (p. 98 e 99 de “o budismo e o tinder”). Esse “também” me pareceu um tanto suspeito. A não ser que Fabio tenha um inconsciente sintaticamente perfeito, pois fluidez e clareza têm sido o ponto forte do autor, em todos os quatro livros. Conseguir isso com o espontaneísmo da técnica dos surrealistas é extremamente difícil. 


Seja como for, a inquietação criativa é a marca dos verdadeiros artistas. Repetir-se, por melhor que seja a dicção alcançada, é esgotar-se. O poeta, digno desse título, está sempre à procura de novos caminhos, mesmo quando precise desenvolver uma nova “assinatura” em seus trabalhos.


Ricardo Alfaya


Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2022.


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